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sábado, 11 de fevereiro de 2012

Meu Ideal

Estava lendo alguns e-mails e recebi, de uma amiga esta linda crônica de Ruben Braga. Pensei que ela é o ideal de todo bom escritor e de todo bom leitor. Espero que apreciem, é realmente linda.

 

       MEU IDEAL


       SERIA ESCREVER...

        MEU ideal seria escrever uma história tão engraçada que aquela moça que está doente naquela casa cinzenta
quando lesse minha história no jornal risse, risse tanto que chegasse a chorar e dissesse — "ai meu Deus, que
história mais engraçada!" E então a contasse para a cozinheira e telefonasse para duas ou três amigas para contar a
história; e todos a quem ela contasse rissem muito e ficassem alegremente espantados de vê-la tão alegre. Ah, que
minha história fosse como um raio de sol, irresistivelmente louro, quente, vivo, em sua vida de moça reclusa,
enlutada, doente. Que ela mesma ficasse admirada ouvindo o próprio riso, e depois repetisse para si própria — "mas
essa história é mesmo muito engraçada!"
        Que um casal que estivesse em casa mal-humorado, o marido bastante aborrecido com a mulher, a mulher
bastante irritada com o marido, que esse casal também fosse atingido pela minha história. O marido a leria e
começaria a rir, o que aumentaria a irritação da mulher. Mas depois que esta, apesar de sua má vontade, tomasse
conhecimento da história, ela também risse muito, e ficassem os dois rindo sem poder olhar um para o outro sem rir
mais; e que um, ouvindo aquele riso do outro, se lembrasse do alegre tempo de namoro, e reencontrassem os dois a
alegria perdida de estarem juntos.
        Que nas cadeias, nos hospitais, em todas as salas de espera a minha história chegasse — e tão fascinante de
graça, tão irresistível, tão colorida e tão pura que todos limpassem seu coração com lágrimas de alegria; que o
comissário do distrito, depois de ler minha história, mandasse soltar aqueles bêbados e também aquelas pobres
mulheres colhidas na calçada e lhes dissesse — "por favor, se comportem, que diabo! eu não gosto de prender
ninguém!" E que assim todos tratassem melhor seus empregados, seus dependentes e seus semelhantes em alegre e
espontânea homenagem à minha história.
        E que ela aos poucos se espalhasse pelo mundo e fosse contada de mil maneiras, e fosse atribuída a um persa,
na Nigéria, a um australiano, em Dublin, a um japonês, em Chicago — mas que em todas as línguas ela guardasse a sua
frescura, a sua pureza, o seu encanto surpreendente; e que no fundo de uma aldeia da China, um chinês muito pobre,
muito sábio e muito velho dissesse: "Nunca ouvi uma história assim tão engraçada e tão boa em toda a minha vida;
valeu a pena ter vivido até hoje para ouvi-la; essa história não pode ter sido inventada por nenhum homem, foi com
certeza algum anjo tagarela que a contou aos ouvidos de um santo que dormia, e que ele pensou que já estivesse
morto; sim, deve ser uma história do céu que se filtrou por acaso até nosso conhecimento; é divina."
        E quando todos me perguntassem — "mas de onde é que você tirou essa história?" — eu responderia que ela não
é minha, que eu a ouvi por acaso na rua, de um desconhecido que a contava a outro desconhecido, e que por sinal
começara a contar assim: "Ontem ouvi um sujeito contar uma história..."
        E eu esconderia completamente a humilde verdade: que eu inventei toda a minha história em um só segundo,
quando pensei na tristeza daquela moça que está doente, que sempre está doente e sempre está de luto sozinha naquela
pequena casa cinzenta de meu bairro.

 

Rubem Braga

Fonte:

BRAGA, Rubem. A traição das elegantes, Editora Sabiá, Rio de Janeiro, 1967.